Lembrar Eugénio de Andrade


Eugénio de Andrade morreu no dia 12 de Junho, há dois anos. Poeta da palavra, do amor, da mãe, do Porto, cidade que escolheu para viver e acabar os seus dias. Poeta de sempre, é sempre que tem de ser lembrado. Aqui ficam dois pequenos poemas e uma foto. Para ajudar a recordar...

"Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos."

"Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça."


"Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."

3 Comentários:

Cristiana Afonso disse...

Sem dúvida uma homenagem merecida.
Já agora, aproveitem e visitem o site da "Fundação Eugénio de Andrade": http://www.fundacaoeugenioandrade.pt/

E sorriam também com este:)

O SORRISO

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

(O OUTRO NOME DA TERRA)

Anónimo disse...

Os poetas mostram uma sensibilidade que os diferencia dos comuns mortais; por isso são poetas.
As palavras não são apenas signos que traduzem relações mais ou menos objectivas.As palavras "derramam" o universo pessoal plasmado, entre outros, pelas emoções, os sentimentos, a vitalidade, os valores, a vontade e a expectativa dos utilizadores. Aparentemente somos nós que as usamos e o uso é não raramente abuso quando as instrumentalizamos pervertendo, voluntariamente, a sua aplicação. Outras vezes, contudo, são elas que nos usam exteriorizando o que é inconfessável ou socialmente pouco aceitável, expondo-nos muito mais do que aparentemente se supõe.
Amarrados ao carácter mundano e prosaico da existência elegemos "palavras gastas" para designar experiências vitalmente fortes e profundas mas adulteradas pela ligeireza e incipiência do sentir.
É a sensibilidade poética que percebe este abismo entre o inefável e o dizível mediado pelas "palavras gastas".

Quita disse...

Palavras pra quê?

Belo post.